domingo, 15 de novembro de 2015

Conceito: sexo

Em toda a sua misteriosidade, a vida amorosa, é dificilmente definível, fugidia às racionalizações. Na sua mais plena intimidade, parece apenas poder ser pressentida, intuída, vivida. Mas nem por isso deixa de ser sondável ou sociologizável. Estranho é que a sociologia tenha desprezado ou deixado à margem este universo que a todos nos toca, tão afetuosamente, até mesmo aos sociólogos — é o título de um recente artigo publicado na revista Sociology, dando cobro ao ditado ("nunca é tarde para amar"…) que valida a possibilidade de descoberta de amores tardios. O que se passa com a vida amorosa passa-se também com a sexualidade. Tão presente e simultaneamente tão ausente. Presença disseminada pelo social: rentabilizada no comércio pornográfico, na publicidade, na literatura; racionalizada em revistas de “educação sexual”; moralizada em discursos eclesiásticos; divulgada, recontada, idealizada, segregada. Mas tão ausente das análises sociológicas. A sociologia tem estudado as relações pré-nupciais, a escolha de cônjuges, o funcionamento das famílias, o divórcio, a reconstrução das famílias… mas pouco se sabe sobre a vida amorosa e a sexualidade. Apenas o que se circunscreve ao parentesco, casamento, família ou proibição de incesto, numa perspectiva que Foucault qualifica de “repressiva” e “utilitarista”. O amor é um jogo — diz-se — mas é também uma prática de poder orientada sobre o saber do outros que a sociologia deve explorar. Quais as sexualidades da sexualidade e os amores do amor na sua pluralidade conjugatória? As representações sociais sobre a sexualidade e a vida amorosa interessam-nos ainda na medida em que, através delas, podemos melhor perceber a natureza “construtivista” de ambos os fenômenos, em todas as suas dimensões sociais. De facto, a rejeição da “hipótese repressiva”, por parte de Foucault, convida-nos a olhar a sexualidade e a “linguagem” do amor como discursividades.  As críticas dirigidas à “hipótese repressiva”, que tanto contribuíram para desmistificar uma era como a vitoriana — que não apenas se caracterizou por uma repressão da sexualidade mas também contemplou uma ampla produção, categorização e multiplicação dos discursos sobre a sexualidade ("dispositivos da sexualidade") — sugerem-nos que se, na verdade, há uma “sexualidade reprimida”, o importante é descobrir porque se produz tal afirmação e se reproduz a representação. A diferentes formas de sexualidade associam-se, com efeito, diferentes formas discursivas e representacionais. Que representações teriam os portugueses sobre alguns aspectos da sua sexualidade e vida amorosa? No Inquérito realizado, trabalhámos apenas alguns indicadores sobre: interditos da sexualidade; suas valorações; condições necessárias e suficientes para o relacionamento sexual; iniciação sexual (quando, onde e com quem); métodos contraceptivos; atitudes face à AIDS; permissividades sexuais (o aceitável e não aceitável); e, finalmente, alguns aspectos relacionados com a pornografia. A problemática de partida movia-nos na tentativa de descobrir diferentes morais sexuais em diferentes contextos sociais. As dimensões analíticas entretanto construídas arrastavam algumas hipóteses de investigação: a difusão da planificação familiar teria ajudado à modulação de uma nova sexualidade? As atitudes em relação à sexualidade seriam de natureza mais romântica ou mais hedonista? Com valências mais confluenciais ou conflituais? A “hipótese da diversidade” prevaleceria sobre a “hipótese repressiva"? As jovens gerações estariam a aderir a uma nova ética sexual? Em todas as questões relacionadas com a sexualidade, sempre se rejeitou a ideia que a toma como qualquer imaginável libido natural. Embora a sexualidade seja vivida corporalmente. A sociologia da sexualidade não é, pois, a sociologia de uma ato meramente biológico — dos mais repetitivos e banais atos da vida quotidiana. As normatividades da vida sexual e amorosa encontram-se, de facto, prescritas e proscritas por diversos espaços, tempos, modos e ritos. A própria inquirição sociológica destes temas não deixa de ser problemática. Quando realizámos o pré-teste do questionário, alguns entrevistados acharam indiscretas algumas das questões colocadas. Na versão final do questionário que haveria de ser utilizado decidiu-se que apenas um parte dessas questões fossem directamente colocadas aos inquiridos. Quanto às de teor mais “reservado” ou “delicado”, os entrevistadores foram instruídos para que, sempre que notassem algum embaraço por parte dos respondentes, adoptassem uma estratégia facilitadora: entregavam-lhes uma folha com as questões mais “problemáticas” e um envelope para que devolvessem as respostas, com portes pagos e anonimato garantido. A percentagem de “não-respostas” foi, contudo, bastante significativa, em algumas questões. As respostas através das não-respostas não deixam de ser ilustrativas. A sua análise passa, afinal, pela explicação da “gestão social dos silêncios”.  Essas respostas não ditas (ou ditas em forma de silêncio…) são, como outras metáforas do sexo, uma forma de simbolização do social, uma manifestação de resistência relativamente a uma determinada economia da ordem, da contenção, dos filtros normativos que regulam a vida amorosa e sexual. E quanto às respostas que nos foram dadas, restam sempre muitas dúvidas sobre a sua fidedignidade. Neste sentido, as hipóteses de interpretação levantadas devem ser olhadas com desconfiança. Mas os receios em inquirir um domínio tão problemático não deverão desencorajar-nos de tentar interpretá-lo. Amor ou sexo: uma questão de género Cedo descobrimos que o sexo não tem o mesmo sentido ao considerar-se o género dos inquiridos. Para a maioria das mulheres (62%), o sexo apenas tem sentido com amor; entre os homens não existe uma tal unanimidade. É como se, entre as mulheres, o prazer se fundisse com o amor; enquanto que, para os homens, o desfrute do prazer não implica a necessidade de um envolvimento amoroso. Mesmo levando em linha de conta que a palavra “amor” não tem o mesmo significado para homens e mulheres, estas parecem investir bastante mais no que em sentido lato se pode entender por amor. Não se trata, evidentemente, de uma característica inata ou biológica mas, tão-somente, do produto de uma identidade feminina socialmente construída em torno do “sensível” e do “afetuoso”, à qual as próprias mulheres procurarão dar um sentido valorativo, uma vez que a sociedade continua a desvalorizá-las noutros campos da vida social. Aliás, diversos estudos têm acentuado as limitações que os homens têm em exteriorizar as suas emoções e afetos,veiculando também a ideia de que tendem a isolar a sexualidade da esfera da paixão.Ou seja, para alguns homens a atividade sexual aporta gratificações outras que não apenas, ou predominantemente, as afetivas — as quais serão mais valorizadas pelas mulheres. Numa sociedade governada por uma moral rígida, como foi a sociedade portuguesa até aos anos 70, teriam ainda de surgir manifestações residuais de alguma intolerância quanto às relações pré-matrimoniais. As mais velhas gerações inquiridas acabam ainda por veicular essa mentalidade interditória. Contudo, a geração que chegou à puberdade ao longo dos anos 80 dá mostras de uma maior tolerância perante a possibilidade de as relações sexuais ocorrerem antes do casamento. Aliás, diversos factores têm contribuído para uma maior recorrência das relações pré-matrimoniais, como o prova a teoria dos “meios, motivos e oportunidades”. Baseado em algumas teorias criminológicas e comparando os factores que levam ao crime com aqueles outros que viabilizam as relações pré-matrimoniais, Robert Walsh conclui que, em ambos os casos, os meios, os motivos e a ocasião… fazem o “ladrão” (ainda persiste a representação de que a virgindade é roubada). No plano da sexualidade, Walsh sustenta que os meios manifestam-se, entre os jovens, a idades mais precoces (mais rápida maturidade biológica); os motivos são incrementados por “holofotes” publicitários (TV, cinema, vídeos, música); quanto às oportunidades não vão faltando: ou pela crescente incorporação da mulher no sistema educacional e no mercado de trabalho, ou porque os filhos ficam em casa mais “à-vontade”, ou porque a divulgação dos métodos contraceptivos afasta o temor de gravidezes indesejadas. Neste campo, contudo, várias moralidades se confrontam: para as mulheres é ainda defendida uma virtuosidade que pressupõe abstinência fora do quadro das relações matrimoniais. As mulheres sexualmente muito vividas continuam a merecer um olhar de desconfiança e reprovação por parte da sociedade “respeitável”. Em contrapartida, os homens desfrutam de uma maior permissividade, não apenas antes como depois do casamento. O adultério, por exemplo, quando praticado pela mulher, é visto como uma transgressão imperdoável, nada comparável ao  adultério praticado pelos homens, tomado como uma fraqueza — lamentável mas perdoável. Como quer que seja, a iniciação sexual tem-se antecipado bastante à inserção conjugal. Como adiante veremos, os mais jovens chegam ao casamento com uma já longa experiência sexual, o que não acontecia, em tão larga extensão, com as mais velhas gerações, nomeadamente as mulheres. Outrora havia uma transição mais brusca entre um pequeno período de (possível) iniciação sexual e o casamento. A iniciação sexual entre os jovens baseava-se em encontros furtivos e clandestinos. Atualmente, a sexualidade é, entre as jovens gerações, normalmente experimentada antes do casamento. Entre um modelo de abstinência e um modelo de permissividade — com ou sem presença de amor —, os portugueses parecem viver num modelo de padrão-duplo, de natureza mais ortodoxa que transicional, ou seja: permissividade para os homens contra uma relativa abstinência para as mulheres. Contudo, não obstante a vigência deste padrão-duplo, hoje em dia é menos dramatizada a possibilidade de as mulheres poderem ter relações pré-matrimoniais. Por outras palavras, parece esbater-se a secular equivalência entre o feminino e a espera ou a resignação. 








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